Caminhar por dias em meio à natureza é um alento para o corpo e a alma. Melhor ainda se o lugar escolhido for o Vale do Pati, cantinho especial da nossa querida Chapada Diamantina. No coração do Parque Nacional, dezenas de atrativos surpreendem e encantam. Diante da grandeza do ambiente, sentimo-nos pequenos, mas, ao mesmo tempo, integrantes deste universo tão mágico e envolvente, em uma inspiradora jornada de autoconhecimento. Sentimos a intensidade da vida e percebemos que a magnitude da natureza também está dentro de nós. Longe da cidade, aproveitamos o cenário bucólico para contemplação. As horas passam, mas, no lugar de ponteiros, observamos o movimento do sol.
Em meio ao cenário natural, chegamos aos quase 1.400m de altitude, caminhando mais de 70km por cinco dias. Passamos por platôs, gerais, vales escarpados, cerrado e resquícios da Mata Atlântica. Ainda tivemos a oportunidade de trocar experiências com os nativos, anfitriões singulares, que da agricultura familiar ao turismo se envolvem de alguma forma com os visitantes, ensinando com base na sabedoria popular.
Acompanhe nosso Diário de Bordo e prepare a sua mochila rumo ao Vale Encantado!
DIÁRIO DE BORDO
Roteiro de 5 dias – De 12 a 16/9/2015
Entrada pelo Beco do Guiné/Mucugê – Saída pelo Bomba/Vale do Capão
Subida pelo Beco do Guiné passando pelo Rio Preto, Mirante do Pati, Rampa, Cruzeiro; Pernoite na casa de Seu Wilson
Nível de dificuldade: moderado a avançado
Distância total percorrida: 10km
Tempo médio de caminhada: 5h
Nossa aventura começa em pleno sol, em meio ao colorido da primavera e o frescor do vento que, por vezes, ameniza a alta temperatura. Após seguir pela estrada de carro no trecho Lençóis-Guiné (por Palmeiras), adentramos no território do Parque Nacional da Chapada Diamantina, exatamente às 11h da manhã. A subida é íngreme, apesar de durar pouco tempo – cerca de 40min até a primeira parada, sob a sombra e águas refrescantes do Rio Preto. A 1.256 metros de altitude, recebemos visitas inesperadas: as típicas mutucas, moscas graúdas que parecem gostar do sangue novo, e o simpático tico-tico. Com seu topete irreverente, o pássaro até posa para foto, beneficiando-se dos insetos tombados ao nosso redor. É hora de degustar o tão esperado lanche, que inclui frutas, chocolate, ovo cozido, sanduíche natural e um saboroso suco de goiaba.
O som das aves e a paisagem serrana dos morros Branco, Castelo e da Rampa dão vida ao cenário que vai se delineando diante dos nossos olhos. Mais 30min e estamos no Mirante do Pati, lugar perfeito para fotografar e trocar ideias, afinal, os visitantes são de diversos países e o intercâmbio cultural vai longe. A descida da Rampa até o Cruzeiro dura, em média, 30min, e requer equilíbrio mental e resistência física. A Igrejinha é vista do alto, assim como as casas de alguns nativos (Seu Wilson, D.ª Léa e Raquel, pontos de apoio do Vale). Descemos rumo à residência de um dos moradores mais antigos do Vale, que, ao lado da esposa Maria e filha Nara, recebe visitantes do mundo todo. Seu Wilson confessa que já perdeu as contas das celebridades e dos estrangeiros que deram o ar da graça em sua humilde morada, na qual a energia é solar, iluminando apenas o refeitório e os banheiros. No quarto, a luz de velas é segundo plano, diante do brilho das estrelas e dos vagalumes que piscam sem parar. A essa altura, estamos, literalmente, mais perto do céu.
Seu Wílson
Senhor de quase 70 anos, Seu Wilson Oliveira nasceu e se criou no Vale, mas não alcançou a época do auge das plantações, com destaque para a cultura do café, quando o Pati era habitado por mais de duas mil pessoas, quase 400 famílias. “Eles fugiram da seca, porque aqui dava pra plantar. Primeiro cultivaram mandioca, depois café”, relembra. Junto com a sua esposa e filha, ele toca o negócio e admite que acha monótono quando não há visitantes no local. Para a família, as ervas medicinas fazem parte do cotidiano. Se o turista sente dor muscular, D.ª Maria prepara uma mistura de confrei, arnica e mastruz; a cidreira é um santo remédio para diversos problemas, acalmando ainda mais os ânimos. Cachaça, licor e até alfajor são algumas iguarias da casa. O quintal se confunde com a floresta e não sabemos onde termina um e começa o outro em meio à profundidade do ambiente. Na pequena horta, a salada está garantida e a sobremesa também, com o gracioso bananal. A energia só faz falta para algumas atividades do cotidiano, como “lavar roupas”, revela Nara. A geladeira é a gás, trazido no lombo dos animais duas vezes por mês. Para os nativos, quem vem para o Vale, tem que preservar. “Se não preservarmos, nossos netos não verão nada disso”, adverte Nara. “O que mais preocupa é a poluição”, completa seu pai. Ajudar na preservação deste santuário ecológico é uma das ações que fazem com afinco, orientando os visitantes para manter o equilíbrio ambiental do Pati, especialmente de seus mananciais. O sossego é o ponto-chave para continuarem no local, que cuidam com carinho e do qual não pretendem sair. “Eu não troco isto por lugar nenhum”, comenta Seu Wilson.
Cachoeirão por cima passando pelos Gerais do Rio Preto e Cachoeira do Funil; Pernoite na casa de Seu Wilson
Nível de dificuldade: moderado a avançado
Distância total percorrida: 18,5km
Tempo médio de caminhada: 6h (5h ida e volta Cachoeirão por cima + 1h com a Cachoeira do Funil)
A partir do segundo dia, o tempo amanhece nublado, mas a expectativa colore nossos olhos e pensamentos.
Seguimos rumo ao Cachoeirão por cima, com sua imponência de quase 300m de altura. No período das chuvas, ele chega a ter mais de dez quedas d’águas, um verdadeiro oásis! Começamos a caminhar às 8h20, passando por vários riachos e pela bela paisagem campestre dos Gerais do Rio Preto, que, com o vento, mais parece um tapete dourado. A primeira parada é na Toca do Gavião, após 1h30 de passeio.
Borboletas, aves e flores se misturam à imensidão do cenário natural – realçada pela ilusão de ótica provocada pela fileira de morros que surge do horizonte – convidam para a contemplação dos mínimos detalhes. Daí a vegetação densa, típica de floresta, leva-nos direto a um dos mirantes da cachoeira, que, de repente, provoca os sentidos. Uns arriscam ir à beira da pedra para uma pausa fotográfica – com técnica e profissionalismo, claro, como praticar um esporte radical; outros preferem a distância, pois as pernas tremem e o medo prevalece. Preferimos observar, enquanto nosso guia, Pedrão, curtia sua dose de adrenalina. Diante da vista delirante, imaginamos como será o quarto dia, quando conheceremos o Cachoeirão por baixo e teremos a oportunidade de nos banhar nos seus dois poços.
Na volta, o céu está azul e os animais de carga nos encontram pelo caminho, repletos de mantimentos para reabastecer as dispensas dos patizeiros. Mas o passeio ainda não acabou! Agora é a vez da Cachoeira do Funil, com cerca de 30m de queda d’água. Para chegar até ela, passamos pela Cachoeira da Piaba, conhecida entre os nativos como Zé Raimundo. Logo acima do atrativo principal, está a Cachoeira da Altina (nome que homenageia a senhora que lavava roupa no local), e, pelas redondezas, a Cachoeira do Rodão, lugar que já foi destinado ao beneficiamento do café. O retorno força o coração e os pulmões na subida íngreme de 30min. Pelo caminho, construções abandonadas lembram que o Vale já foi muito mais movimentado que atualmente, com escolas e casas de farinha. Agora é voltar para casa, tomar um bom banho, saborear o “almoço-janta” e dormir cedo para acordar com o sol, ou melhor, com a peculiar neblina matinal.
Morro do Castelo e Poço da Árvore; Pernoite na Prefeitura
Nível de dificuldade: avançado
Distância total percorrida: 6km (Pouco mais de 2km Morro do Castelo + cerca de 4km até a Prefeitura com visita ao Poço da Árvore)
Tempo médio de caminhada: 2h30
Você Sabia? “Esse nome foi colocado pelos hippies, que achavam o morro parecido com um castelo. Mas os nativos nunca viram um castelo. Como saberiam se é semelhante? Confirmaram sem saber”, relembra Seu Wilson. “Pra nós, patizeiros, é o Morro da Lapinha”, conclui.
Despertamos ansiosos para conquistar o Castelo! Desde o início da subida, o som das arapongas – ave que canta imitando as pancadas do ferreiro na bigorna -, se destaca no coral de sons que nos acompanha em sintonia. As árvores aparecem como corrimãos naturais, ora colocadas propositalmente para garantir o mínimo de segurança no percurso, ora deixadas pela mãe-natureza na sua sapiência. Jardins com flores esquisitas, batizadas por alguns guias de flor-microfone ou Castelândia,
seduzem as abelhas, importantes agentes polinizadores da região.
Para chegar aos mirantes do morro, que apresenta uma vista panorâmica do Vale, precisamos adentrar cerca de 250m por uma caverna. O vento forte que sobra das suas frestas deixam a temperatura amena, como se existisse um ar-condicionado natural no lugar. Do alto, admiramos o céu azul e o movimento das nuvens.
Na volta, o caminho no interior da gruta é um pouco diferente: há uma entrada, mas duas saídas paralelas. A subida foi íngreme e a descida se revela mais tranquila do que pensávamos. Em vez de 1h, retornamos em 30min. Já na casa de Seu Wilson, é hora de colocar as mochilas nas costas e partir para a Prefeitura, segundo ponto de apoio da nossa expedição. O melhor mesmo é deixar o peso de lado e curtir o banho refrescante do Poço da Árvore (a 20min), com sua vista esplêndida para o Morro do Castelo em pleno entardecer. O refeitório do espaço também é recinto de recordações, com murais que expõem fotos dos turistas com a família de Jailson, um dos 11 filhos de D.ª Raquel, responsável pelo local. Amanhã e dia de Cachoeirão, desta vez por baixo. Claro que estamos ansiosos pelas descobertas do terceiro dia…
Cachoeirão por baixo e pernoite na Prefeitura
Grau de dificuldade: moderado a avançado
Distância total percorrida: 18km
Tempo médio de caminhada: 5h
Com subidas e descidas por todo o percurso, às margens do Rio Pati, a declividade se torna um desafio. Após pouco mais de 1h de caminhada, passamos pela casa de Tonho, um sítio em estilo campestre. Curral, galinhas e cachorros compõem o ambiente pastoril. Em frente ao Rio do Cachoeirão, diferentes morros dão forma à paisagem. A poucos metros do primeiro poço, de águas extremamente geladas, o guia do outro grupo avisa que há um enxame de abelhas no caminho. A dica é seguir em silêncio, para não chamar a atenção dos insetos, mas preferimos não arriscar e desviamos a rota. Mais 1h de caminhada sobre pedras e, enfim, contemplamos a majestade!
As gotículas de água que caem do Cachoeirão mais parecem chuva e, por vezes, formam um verdadeiro redemoinho no céu, junto com as folhas que voam incessantemente e dialogam com a dança das andorinhas e borboletas. As arapongas também estão presentes por aqui, com seu canto estridente. Para chegar ao segundo poço, é preciso subir um pouco mais, com passagem por um reduto de sempre-vivas, que ofuscam os olhos com sua brancura, e parada em um pequeno mirante, de onde se avista a cadeia de morros com nomes excêntricos, como Quebra-Culatra, Canto Escuro, Gavião e Gorila. O retorno para a Prefeitura é mais leve e inclui parada no Rio Cachoeirão, em frente à propriedade de Domingos, neto de Seu Eduardo, para um rápido e refrescante banho. Os minutos que se seguem são acompanhados pelo pôr do sol que revela as silhuetas dos morros perto do entardecer.
Cachoeira do Calixto com passagem pelo Córrego do Sebo; Gerais do Vieira; Ancorado e Saída pela Ladeira do Bomba (Vale do Capão)
Nível de dificuldade: moderado a avançado
Distância total percorrida: 22km
Tempo médio de caminhada: 7h
O dia é de despedida… Entramos no Vale do Pati com a energia do sol e voltamos sob uma fraca chuva, que nos ajudou bastante a renovar o fôlego na subida do Calixto. Apesar de as mochilas estarem mais leves, os músculos reclamam do excesso de trabalho. Os corações, por sua vez, seguem cheios de saudade. Aproveitamos para nos despedir de Jailson e sua família, além de fazer uma foto oficial da nossa equipe. A primeira parada é na Cachoeira do Calixto, ou dos Carolino, como conhecem os nativos, em homenagem aos antigos donos de terra do lugar. Após 1h30 de subida íngreme e escorregadia, por conta da chuva, renovamos o fôlego e partimos rumo ao Córrego do Sebo, segunda parada deste dia. A proximidade dos Gerais se revela na paisagem repleta de flores, embalada até por uma trilha sonora (provavelmente tocada por grilos), que nos acompanha por boa parte do caminho.
Aos poucos, a caminhada vai se tornando tão prazerosa diante da paisagem magnífica que contemplar a grandiosidade dos Morros Manoel Vitor e da Matinha são apenas detalhes. Na Toca do Gaúcho, o intervalo é para um breve lanche. Em meio aos Gerais do Vieira, o carcará dá o ar da graça ao lado de algumas mulas que pastam por aqui, enquanto o vento nos ajuda a ir em frente (mas, por vezes, nos empurra de volta ao Vale Encantado). O Ancorado aparece como um verdadeiro oásis sob o forte sol deste último dia, no qual a caminhada parece interminável. A minutos da Ladeira do Bomba, avistamos a beleza do Morrão e enxergamos as casinhas do Vale do Capão, onde paramos para “matar” a fome e descansar das 7h de caminhada. No final da nossa expedição, o clima é de agradecimento. Guiados pela luz da lua e do céu estrelado, retornamos para Lençóis. É hora de voltar à rotina, porém com outros olhos, pensamentos e atitudes.
Ao combate!
Desde o primeiro dia de trekking, enxergamos, ao longe, uma névoa, mas não entendemos bem a sua origem: fumaça? inversão térmica? Mais tarde, com a fuligem sobre as camas, soubemos que eram focos de um incêndio que durou uma semana e, infelizmente, devastou parte do Parque Nacional. Segundo o ICMBio, o fogo totalmente natural é muito difícil de ocorrer. Infelizmente o ser humano é o principal responsável pela devastação. “O fogo faz parte da dinâmica de alguns ecossistemas da Chapada Diamantina, mas o fogo natural ocorre apenas quando há raios e normalmente não costuma causar grandes danos. Todo o fogo que ocorreu neste ano foi provocado por pessoas – pelas mais variadas motivações, incluindo descuido (embora estes sejam minoria). Nos últimos anos, tem havido uma redução na quantidade de focos de incêndio, mas a extensão queimada tem sido mais ou menos a mesma do que ocorria a uns nove ou dez anos. Isto pode estar acontecendo devido ao acúmulo de biomassa, ou seja, a vegetação tem queimado com menos frequência, então acumula mais material orgânico e, quando queima, queima com grande intensidade. De qualquer modo, o sistema de combate tem funcionado razoavelmente bem, com a ação das brigadas contratadas pelo Ibama e ICMBio e com o apoio fundamental dos brigadistas voluntários, das prefeituras da região e de vários setores da sociedade civil e do governo. Falando dos turistas, é essencial que não façam fogueiras em hipótese alguma. Onde for possível, como no Pati, é preferível ficar na residência dos moradores. Onde não há esta opção, recomenda-se que os visitantes sejam acompanhados por guias habilitados e que usem apenas fogareiros portáteis para o preparo de alimentos. E, em hipótese alguma, colocar fogo em papéis ou no mato seco. É fácil perder o controle da situação com os fortes ventos e o clima seco que tem feito na região”, explica Cezar Neubert, analista ambiental do ICMBio.
Faça a sua parte e contribua para a preservação deste santuário ecológico! Lembre-se de que colocar fogo no Parque Nacional é crime e, além de multa, pode resultar em processo civil e criminal! Para denúncias, ligue (75) 3332-2310/2418 ou envie e-mail para parnadiamantina@yahoo.com.br.
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