Relato da jornalista mineira Laura Capanema, da revista Viagem e Turismo, que encarou três dias sob o sol no mais bonito trekking brasileiro, o do Vale do Pati, na Chapada Diamantina.
Fonte: Viagem e Turismo
Por Laura Capanema
Ir à Bahia e não ver o mar. Nunca imaginei que isso pudesse fazer sentido. Como boa mineira, sou devota de São Dorival e entendo o estado como uma faixa de areia de quase 1 000 quilômetros de extensão com um marzão defronte. Mas eis que estou a 400 quilômetros da costa, na Chapada Diamantina. Eu, que nunca fui de gostar de andar, agora encaro um dos trekkings mais famosos, bonitos e pesados do Brasil.
Foi preciso ver pra crer, cair aqui para mudar minha concepção de paraíso. Os trekkings realmente são longos, podem durar dias, mas as lonjuras são amenizadas quando se sabe que pelo caminho há dezenas de cachoeiras, cânions, grutas, poços encantados, rios, tudo interligado por trilhas que foram abertas por garimpeiros que percorriam como bandeirantes a região.
A Chapada tem uma fração de seus peculiares biomas de caatinga, cerrado e Mata Atlântica protegida pelo Parque Nacional da Chapada Diamantina. Cidades e vilas importantes como Lençóis, a grande base, e Andaraí estão no seu entorno. A Chapada é tida como o principal destino de ecoturismo do Brasil pela quantidade e pela beleza de suas atrações naturais e também pela flora, riquíssima, com centenas de espécies autóctones de orquídeas e sempre-vivas.
O difícil acesso à maioria de seus encantos criou condições para que um sistema sustentável se formasse. Para contemplar a famosa Cachoeira da Fumaça de baixo de sua queda de 380 metros, por exemplo, é preciso encarar um trekking de três dias – e nem mesmo mulas chegam lá. Nesse ambiente, os guias nativos se tornaram imprescindíveis, e ao ato de guiar um grupo agregou-se certa sofisticação. Não só batem escanteio e cabeceiam ajudando muito na marcha e protegendo os turistas dos perigos dos caminhos (cobra, por exemplo, é comum), como encaram uma conversação em inglês. Além disso, têm grande consciência ambiental. Na região trabalham cerca de 300 guias, mas há uma elite da tropa, os 40 ligados à Associação dos Guias de Ecoturismo da Chapada Diamantina (AGE-CD).
Nessa entidade, 60% dos guias são bilíngues e metade possui curso técnico reconhecido pela Embratur. Também são treinados para recolher objetos que são descartados ou esquecidos ao longo da trilha, fazendo com que esse lixo eventual chegue a um destino adequado. “As trilhas são longas e os turistas, curiosos. Percebemos que só ajudar no caminho não era suficiente”, diz Vanderlan Barros, presidente da AGE-CD.
Para curtir o melhor que a natureza esbanja na Chapada Diamantina, deve-se pernoitar nos municípios e vilas que circundam o parque. Lençóis é a porta de entrada, onde estão o aeroporto (no final de 2011, a frequência dobrou: agora são dois voos semanais desde Salvador, pela Trip), os principais hotéis, as agências de turismo e alguma vida noturna. A cidade tem todo o seu conjunto arquitetônico e paisagístico tombado pelo Iphan e está próxima (próximo nos termos da Chapada, ou seja, algo como 30 quilômetros) de um grande cartão-postal, o Morro do Pai Inácio. Muita gente troca Lençóis pelo Vale do Capão – para onde se vai caminhando ou em 4×4 – onde ficam as pousadas mais charmosas da Chapada, como a linda Villa Lagoa das Cores, com ofurô e escalda-pés.
Mais ao sul ainda está a pequenina Mucugê, sede do notável cemitério bizantino, cheio de lápides que lembram capelas góticas, herança dos turcos que, atraídos pelos diamantes, viveram e morreram ali. É também de Mucugê que partem as excursões para a Cachoeira do Buracão, supertrunfo da Chapada. A estrada de acesso é belíssima, e a caminhada não parece ser muito complicada até surgir a parte “emoção”, já bem perto da cachoeira: uma pinguela, trilhas estreitas, um trecho de rio em que é necessário nadar contra a correnteza. Vencido tudo isso, a recompensa é o barulho ensurdecedor – e completamente redentor – da Buracão.
Igatu, outro vilarejo, tem “393 habitantes, 130 famílias, 36 aposentados, 13 viúvos, quatro pousadas e três telefones públicos”, como me informou no dia 8 de fevereiro Amarildo dos Santos, o “homem do censo”, que vende livros manuscritos e ilustrados sobre o local por R$ 20. Ali está também a Galeria de Arte e Memória, museu a céu aberto com objetos antigos do garimpo, esculturas e até exposições temporárias de arte contemporânea.
Entre os passeios, a maior aventura é a Travessia do Vale do Pati, considerado o trekking mais bonito do Brasil. O itinerário clássico da “Compostela baiana” tem 70 quilômetros e cinco dias de caminhada, com pernoite em casas de nativos que hoje ganham a vida como “pousadeiros” improvisados.
É possível também intercambiar os trajetos e diminuir o esforço. Eu e seis turistas fizemos o Pati em três dias – e longos 46 quilômetros, finalizando no vilarejo de Guiné. Seja a versão curta ou a estendida, é preciso largar o conforto do hotel para encarar matas fechadas, subidas íngremes e muito sol perpendicular à cabeça, além de banho frio em noites que também podem ser frias. Se não bate nem de longe um arrependimento, é correto dizer que surgem muitas dúvidas na mente do viajante de que a Chapada seja mesmo o lugar para estar nas férias.
Uma vez dentro do Pati, há caminhos mais curtos que podem ser combinados com o seu guia (em geral, ele conduz grupos de cinco pessoas). Não ceda à tentação de fazer tudo sozinho. Apesar de a trilha ser facilmente reconhecida pelas marcações no chão, há muitas bifurcações e passagens que podem levar sabe-se lá aonde. No ambiente da Chapada, o guia é uma espécie de demiurgo. Distinguir e descrever as nuances da vegetação ou do relevo a gente já dá de barato que ele faz, mas o trabalho que tem para levantar a moral do grupo é notável. O nosso guia, Adelson, o Del, virou o herói da trupe. Costumávamos dizer que só chegávamos ilesos ao fim de nossas jornadas “graças a Del”. Em caso de desistência ou acidente, Del disse que poderia chamar o “socorro” – uma mula a R$ 150 por dia. Cada viajante é responsável por levar sua própria mochila, mas pode-se contratar um carregador (R$ 90 por dia).
O começo
O primeiro dia da minha travessia teve, como que para dar um gostinho de quero menos, 22 quilômetros. A travessia começou às 8h30 no “Bomba”, ponto que marca o início da trilha. Nos primeiros dez minutos já precisamos tirar as botas para atravessar um riacho e subimos até o Gerais do Vieira, com uma vista incrível para o Vale do Capão. Depois há a travessia da região do Rio Preto, área plana e extensa. A paisagem é um estouro, mas o cansaço bate com força antes mesmo da terceira hora. Depois há uma escalada de uma hora pelo morro chamado “Quebra-Bunda” e uma descida beirando um precipício. Ao chegar à casa do seu Wilson, onde passamos a primeira noite, o banho era gelado e o jantar, lombo de porco com batata frita, cacto (lembra chuchu, com menos gosto ainda) e mamão verde. Não havia luz nos quartos nem internet nem sinal de celular, mas deu para carregar a bateria da câmera na tomada da sala do seu Wilson.
No segundo dia subimos três quilômetros pela Serra da Lapinha em direção ao topo do Morro do Castelo, onde há uma gruta de quartzito. É possível atravessá-la e apreciar a vista de babar para o outro lado do vale. A subida é cansativa, e você ainda pode trombar com cobras pelo caminho. Mas, se estiver devidamente calçado, é difícil que o pior aconteça (outro guia, o Jaime, me contou que três pessoas tinham sido picadas em janeiro, mas todas estavam descalças). Depois é preciso descer os mesmos três quilômetros, o que pareceria extremamente fácil caso algum de nós ainda tivesse joelhos. O pernoite foi feito na casa da dona Léa, com uma estrutura melhor, com luz no quarto e espelho no banheiro, mas o café da manhã deixou a desejar. Acho que ficamos mal acostumados com o pão quente feito na hora lá no seu Wilson. No último dia enfrentamos 18 quilômetros, e o clímax foi a vista de cima do Cachoeirão, clássico do Pati, com quedas-d’água de 300 metros e um poço em formato de coração. É preciso deitar-se na beira do precipício para vê-lo, e até os mais preparados podem negar fogo por medo ou vertigem. No meu grupo estava o empresário paulistano Mirko Lebl, que disse ter concluído três maratonas e parecia mesmo nunca se cansar. Acha que ele chegou perto do Cachoeirão?
O momento final da caminhada se dá numa planície enorme que lembra as savanas do Rei Leão. Na hora de encontrar o carro que nos levaria a Mucugê, todos estávamos esgotados, mas completamente eufóricos com o final daquela prova de fogo.
A superação
O que acontece no Pati não fica no Pati. A experiência é tão forte que vira e mexe volta à cabeça. É interessante ver como superamos nossos medos – a claustrofobia nas cavernas, o medo de altura, o pavor dos insetos e bichos que aparecem pelo caminho (calangos não contam, viram amigos). A estudante de moda paulistana Andressa Marguet, que fez o primeiro trekking da vida justamente no Pati, se arrepiava com as pedras soltas e chorou algumas vezes (nada fora do comum; eu também chorei). Mirko, o maratonista, e a mulher, a terapeuta ocupacional Mariana, já haviam feito a trilha inca em Machu Picchu, mas se embasbacaram com o Pati. “O contato com a natureza aqui é muito, muito intenso”, disse Mariana. Três dias, um pé e dois joelhos machucados depois, eu só posso concordar com ela.
Como canta aquele cara que nós, mineiros, também adoramos, tolice é viver a vida sem aventura.